quarta-feira, 14 de abril de 2010

TEXTO DE APRESENTAÇÃO DA OBRA "VOZES DO PENSAMENTO", POR JOÃO PARREIRA, LIVRARIA BERTRAND, FÓRUM DE AVEIRO, 09/04/2010


«VOZES DO PENSAMENTO,

livro de poemas de procura ontológica da prof. Isabel Rosete,

começa com referências a três vozes que nem a mais cordata transcultura desejaria ligar,

três vozes distintas, as de Rilke, Nietzche e Heidegger.


Sobretudo a do último, porquanto a autora, numa tese que elaborou, percebeu nele uma
preocupação onto-eco-artística (palavras suas) estando ciente de que
compreender a filosofia de Martin Heidegger não significa apenas alterar a nossa
mundivisão, mas também entender a própria Poesia como palavra do Ser no Tempo.

Isabel Rosete costuma dizer que partiu da Filosofia para a Poesia.
Se quiséssemos elaborar aqui sobre um topos, diríamos que a poeta partiu com bilhete
de ida-e-volta da Floresta Negra para os horizontes escarpados de Duíno ( onde Rilke se
recolheu para escutar a poesia) e voltou ao lugar heideggeriano da sua origem.

E dele terá partido, é a minha simples hermenêutica, para o que o filósofo germânico
nunca deixou de nos propor: uma meditação ontológica.
Com a Poesia, que foi, para Heidegger, a essência da Arte.
Porque este volume de poemas, digo-o desde já, procura a Poesia/o fazer poético/ no
oxímoro que é contingência e a essencialidade do Ser.

Não foi Platão quem ligou o termo poesia ao acto que tem por finalidade passar uma
coisa do não-ser ao ser?
A linha de pensamento de cada um dos citados referencialmente pela poeta, não é de
todo comum, mas abre janelas de oportunidade para planícies várias no âmbito de pensar
Poesia.

Embora o efémero de Rilke ( a contrariar um poema de 1901 «Tu és o futuro, aurora
imensa,/ sobre as planuras da eternidade») pareça não jogar a não ser pela loucura com
um quase inesperado «sangue é espírito» do filósofo de Assim Falava Zaratrusta, a
verdade é que, do conjunto dos citados, o autor de O Ser e o Tempo concluiu entre o
efémero e o espírito que o pensamento é o que permanecerá sobre a escuridão do
mundo.

Por isso mesmo, de todos, é Heidegger quem mais está presente neste livro: « Procuro
o Ser, para além das aparências; a transparência, para além da hipocrisia.» - diz a Isabel.
A Poesia tem essa virtualidade e abre-nos as possibilidades de compreender o Ser e o
futuro. Já um dos maiores poetas do fim de século XIX e começos do XX, hoje quase
desconhecido das antologias, o paquistanês Mohammad Iqbal , pela sua religiosidade,
escreveu que «se a poesia molda o homem, então é ela é hereditária da profecia.»


Poesia filosófica, esta de as Vozes do Pensamento? Também. Embora um grande poeta
português, Ruy Belo, também ele douto em filosofia religiosa/direito canónico, tenha
escrito que a filosofia não se dá bem na poesia. Dar-se-á melhor no romance, de onde
parece nunca ter saído pelo menos no século XX a julgar por Camus e Sartre.


Não me parece ser o caso de Vozes do Pensamento, que contem uma filosofia poética
carregada de sentidos, identidades, diferenças, todavia sem pré-conceitos o que pode
ser do domínio da própria filosofia.


É uma poesia repleta de referentes e de objectos comunicáveis? Sim, desde logo o
desvelar da própria autora, que, aproximando-se da heteronímia com outro nome,
variações do ser, escreve, a dado momento do livro:


Des-constroem-se,
Todos os pedaços de mim.
Sobrevivem fragmentos,
In-distintos,
Em pleno estado de efervescência.


Mas é no poema inicial que se identifica, num puro exercício de se apresentar. E aí
afirma-se, para não ser definitiva e se defender de anquilosamentos, de petrificações,
não tanto quem É, mas como ESTÁ, ou para usar uma expressão de Vergílio Ferreira,
também autor caro à nossa poeta, QUEM ESTOU:


Sinto-me leve.
Abandonei todos os grilhões,
Todos os freios,
Todas as limitações.
A minha alma eleva-se.
Confunde-se com as nuvens
De um céu claro,
Transbordante de placidez.


Nestes versos Isabel Rosete fala da alma, da sua alma. E a sua alma exposta é a chave.
Além do mais, é uma alma generosa, porque vê para fora de si própria:


Enaltece-se,
Grandiosa,
Com a imensidão do Universo,
Com a harmonia de todas as formas,
Com a perfeição de todos os seres.


Tem às vezes um senão, como todas as almas sensíveis:


Venda-se,
Aos horrores humanos.
Serena,
Por alguns instantes,
Face à efémera ocultação
Do sofrimento.


Por isso a sua poesia é também libelo acusatório:


Olho em frente.
Vejo a miséria
Das crianças que sofrem,
Imaculadas,
Sem Pátria,
Sem morada.
Escuto o redemoinho libertino
Dos espíritos embriagados
Pela nudez,
Não mais originária.
Olho em frente.
Vejo a prepotência das Nações,
As falsas intenções dos Povos,
Descrentes,
Dissimulados.
Escuto os gritos da Terra,
Em desespero,
Esmagada pela ambição dos Homens,
Sem dignidade.


O início deste poema que questiona o poder, os mais fortes, alheios ao sofrimento do
terno objecto comunicável do poema, ou referente : «as crianças que sofrem», ocorreu-
me que a poesia é uma purga da pobreza do mundo, que a poesia melhora o presente.
O poeta tem a capacidade de se espantar, de se comover com o que seus olhos vêem,
seu espírito perscruta. Mas não se fica pelo espanto, Isabel Rosete integra com tantos
tantos outros poetas a nobre tarefa – como escreveu noutro lugar - de “restituir à Arte
essa nobre missão de des-velamento do Ser e do destino historial dos escassos fios de
Humanidade que ainda nos restam.”


Espanta-se,
Com a beleza dos orbes celestes,
Ainda não avistados.
Comove-se,
Com a infinitude do Universo,
Ainda não des-velada.


Em 1866, o simbolista Paul Verlaine escrevia um poema que era o contrário do espanto
perante a Natureza, , nos seus Poemas Saturnianos, dizia, num momento por ventura de
angústia e antes de dar dois tiros em Rimbaud:
«A natureza nada tem que me comova», «Rio-me da Arte e do Homem», de templos
gregos e de catedrais, e concluiu dizendo que não cria em Deus e expulsava da sua
memória o próprio Amor....
todavia passados alguns anos converteu-se ao Catolicismo.


Voltando a Vozes do Pensamento, detecta-se aqui e além um certo sensacionismo
pessoano, o sentir tudo de todas as maneiras, que abrem ao leitor as perspectivas de
uma mundivisão, ou mais lato ainda, de uma cosmovisão.


O meu pensamento viaja,
Prenhe de fertilidade,
Sempre aberto e determinado


que a autora procura transmitir ao longo das páginas do seu livro. O «sentir tudo de todas
as maneiras» do Álvaro de Campos, reencontra-se neste belo excerto:


Sente,
Todas as emoções,
Ainda não experimentadas.
Apaixona-se,
Pela face oculta do Mistério,
Ainda não re-velada.


Álvaro de Campos, comparativamente, desenvolveu assim o mesmo pensamento, há
mais de 90 anos/ há quase um século:


Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo


Mas será que detecto também um vislumbre dramático de Florbela Espanca?


Uma saudade do Infinito
Cresce dentro de mim,
Como se o Mundo acabasse
Num só dia,
O derradeiro dia
De todos os dias
Do resto da minha vida.


Para nos vir falar dos segredos da Morte! A linha que traço para a compreensão desta
obra, onde vislumbro vasos comunicantes, não deixa de ser observante do que um
poeta romântico inglês Shelley, no século XVIII, definiu como Defesa da Poesia: «o
grande poema que todos os poetas cooperadores de um grande espírito têm vindo a
construir desde o começo do mundo.»


Este livro tem várias chaves, claro que no sentido pessoano do Álvaro de Campos para abrir portas em paredes sem porta, mas um desses poemas-chave do volume, segundo o meu ponto de vista, diz assim


Escrevo
Agarrando a Vida por um só fio,
Tão subtil,
Tão leve,
Tão frágil,
Quanto o das aves migratórias.
O sussurro do Mundo
Envolve-me,
Sempre que as Vozes do Pensamento
Me impelem à escrita.


A razão de ser da autora está aqui, na atenção que dá ao «sussurro do Mundo»:

Embala-me,
Afaga-me,
Num lento e doce caminhar,
Por entre as pausas e os silêncios,
Nas entre-linhas ocultadas.
As palavras soltam-se,
A folha em branco
Preenchem,
E a minha identidade
Aí permanece.

A propósito da identidade que a folha branca espera que tome forma em texto poético,
porque autor e texto são a mesma entidade, termino com um pensamento de um dos
maiores poetas norte-americanos, Wallace Stevens, que a «poesia é o assunto do
poema». O poeta, a sua visão do mundo, o seu estado de criação perante o mundo, são
também o assunto do poema.

E termino mesmo, confidenciando, que para ser fiel à experiência ôntica e poética da

autora, preferi às minhas palavras laterais que seus poemas falassem. Afinal, trata-se de

as múltiplas mas unívocas Vozes de um pensamento.»


© J.T.Parreira

1 comentário:

  1. Parabéns! As múltiplas vozes ou as vozes múltiplas me fizeram lembrar um pouco da visão teológica existente na literatura de Fiodor Dostoievski. Como falar sobre o aspecto "polifônico" e "polifórmico" do mundo dostoievskiano me levaria certo tempo, então noutra oportunidade poderei melhor falar. Parabéns pelo blog.

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